Criatividade para superar as diferenças

relato crítico por Ana Cunha em Fórum Permanente, Museus de Arte, entre o público e o privado – FP

Relato sobre a Plenária intitulada “O que deveria acontecer na saída de um museu? Museus, culturas e sociedadescom o comunicador social e jornalista Jorge Melguizo, em 13/08/13.

Melguizo demonstra sua familiaridade às discussões propostas, não só no cenário internacional, mas também no Brasil, quando aponta que sua apresentação será pautada na retomada de elementos presentes em três conferências que fez no país em 2012, uma no IV Encontro Paulista de Museus[1], com o título “Novas Fronteiras da Gestão de Museus” e organizado pela Secretaria de Cultura de São Paulo, entre 13 e 15 de junho, e outras duas no Encontro Internacional Museus de Cidade (EIMC): A cidade como objeto e agente de representação e transformações sociais, organizado pelo Comitê de Museus de Cidade (CAMOC ICOM) e pela Secretaria Municipal do Rio de Janeiro, entre 20 a 24 de agosto.

Não é de hoje que Melguizo está em diálogo com projetos desenvolvidos no Brasil. Em 2010, foi inaugurada no Complexo de Manguinhos, na cidade do Rio de Janeiro, a primeira biblioteca-parque do Brasil. A construção da Biblioteca Parque de Manguinhos[2] foi inspirada na Rede de Bibliotecas Públicas de Medellín, um dos projetos sob a gestão de Melguizo quando ocupava a Secretaria da Cultura Cidadã da Prefeitura.

Para sua conferência no ICOM 2013, Melguizo estabelece seu ponto de partida: a cidade de Medellín convertida, nos últimos dez anos, em uma referência de profundas mudanças urbanas, culturais, sociais e educacionais. Medellín era uma das cidades mais violentas do mundo – ou violentadas, como prefere distinguir. Aponta que, ainda há muito a ser conquistado em meio a um país em conflito, contudo Medellín não é mais a cidade mais violenta do mundo, da América Latina ou da Colômbia.

Destaca como pontos fundamentais no enfrentamento dos desafios para transformação: a formação de capital humano e social para enfrentar duríssimas realidades; o fortalecimento das organizações da sociedade civil; a recuperação da confiança do público: na educação, nos espaços e serviços públicos, no transporte público convertido em sinônimos de inclusão, igualdade e de oportunidades; a inversão dos orçamentos ampliando os recursos destinados para a educação e a cultura; o entendimento do público como o mínimo denominador comum de uma sociedade; a intervenção integrada e articulada do governo, envolvendo os territórios com menor índice de desenvolvimento urbano e maiores demografia e violência; enfim, a recuperação do “orgulho” da cidade.

A proposta se deu por meio da execução de um plano coletivo, que envolvia organizações comunitárias, igrejas, governos, empresários, em busca de respostas distintas. Melguizo defende: “Não se combate a insegurança de uma cidade com balas e polícia, mas com projetos sociais, com convivência e a criação de espaços de encontro”. A partir de então, tornou-se possível escrever outra história de Medellín, em palimpsesto, em oposição a uma história de conflitos, violência e mortes. Diz ele: “Se em Medellín está sendo possível, em qualquer outra cidade é possível” e aponta que essa experiência em Medellín tem evidenciado como os projetos educativos e os culturais configuram-se como ferramentas fundamentais de qualquer cidade que queira seguir adiante com propostas de transformação social.

Após apresentar os dados sobre Medellín, Melguizo nos alerta que, a partir de então, suas reflexões estarão em conexão com sua trajetória, conectadas com o lugar de onde vem, apostando no Modesto manifesto pelos museus, de Orham Pamuk: “O futuro dos museus está dentro de nossas casas”[3]. Sua apresentação será dividida em três partes: antes de ultrapassar a porta, durante a visita e na saída de um museu. Fica claro que, por seu próprio testemunho, deseja criar um paralelo entre sua conferência e a experiência que considera recorrente em um visitante de museus.

Melguizo nos fala que ao ser convidado por Maria Ignez Mantovani para participar como conferencista no ICOM sentiu temor e reverência, incerteza frente ultrapassar a porta desse recinto repleto de pessoas em sua maioria especialistas e profissionais dos museus. Incerteza frente ao que iria encontrar, ao que deveria dizer e como dizer. Frente ao que aconteceria uma vez que o dissesse, o que se passaria com os ouvintes e o que aconteceria com ele. Como as pessoas, e ele próprio, se sentiriam. Afirma que não seria possível prever o que poderia ter sido transformado na plateia e em si próprio, após a conferência. O sentimento é de intimidação.  Da mesma forma, a maioria das pessoas não sente confiança para ultrapassar a porta de entrada dos museus. Alguns dos motivos por se sentiram assim são: por se sentirem intimidadas, por não saber o que se espera delas ou o que fazer diante de cada obra, enfim, por não poderem intuir o que os museus contêm. Os museus não são sentidos como parte da vida cotidiana das pessoas, por isso não são percebidos como espaço de inclusão,  como possibilidade de encontro. E acabam não sendo usufruídos por boa parte da população, ao menos no contexto Latino-americano, que se apresenta desigual e excludente.

As perguntas que Melguizo nos faz antes de passarmos para dentro do museu: como conseguir que essa população, que não vê os museus como parte da sua vida, transpasse suas portas, apesar dos temores, da reverência e das suas incertezas? São os museus preservadores do patrimônio de uma sociedade, ou geradores e transformadores desses patrimônios? Como um museu pode contribuir em uma sociedade em crise, ou melhor, em uma sociedade em transformação?  Como resolver a tensão que vivemos hoje entre os museus como lugares de exibição de suas coleções ou centros de gestão de projetos culturais?

Melguizo propõe uma nova definição de museu, frente às noções atualizadas sobre o patrimônio. E isso certamente implica em refletir sobre quais curadorias serão necessárias para criar novos conceitos e modelos de museus que ampliem seu sentido para o público, para a promoção das reflexões sobre a construção da cidadania, de projetos éticos de comunidade, para inserção de discursos políticos em seu fazer cultural e artístico. Afirma que os museus deveriam sair das metalinguagens da arte, do afã com suas próprias coleções e transformar-se em museus com uma renovada vocação de transformação social, para responder a crise em que vivemos. Crise essa que não é econômica, mas ética, política e cultural.

Nesse momento, chegamos à reflexão de Melguizo sobre a responsabilidade dos museus para além de suas paredes. Uma tarefa urgente dos museus deve ser a de construir com as comunidades um relato que seja próprio. Ao invés de refletir sobre relatos oficiais e nações, que os museus passem a centralizar suas narrativas nos indivíduos, transformando-se em espaços de atividades culturais, com entrada livre e que suas exposições sejam geradoras de perguntas sobre a realidade, e os projetos, em um processo de construção de novas narrativas transformadoras da sociedade.

Faz-se fundamental que os museus ampliem seus territórios em museus itinerantes e comunitários, enriquecendo suas narrativas com a inclusão de outras estéticas, alimentando-se de outros discursos. Melguizo dá como exemplo a participação de grafiteiros no enriquecimento de discursos e estéticas (e as éticas e as políticas) dos bairros e das cidades. Propõe que o museu seja uma ágora por onde passam muitos pensamentos. Que ultrapasse os quadros nas paredes para que caibam outras coisas: a memória, a gestão cultural, as muitas guerras urbanas e seus sobreviventes, a comunidade. Além de obras, nos museus devem caber pessoas, desprendendo-se do discurso da arte pela arte.

Para isso, acredita fortemente que as curadorias devem ser renovadas. Os curadores de hoje devem matar a arte para que seja possível apropriar as culturas. O curador deve ser essencialmente um comunicador: que coloca em contato o público com uma coleção e seu entorno. Os museus necessitam de curadorias que conheçam muito mais de sua comunidade do que de sua coleção.

Como ponto relevante nesse processo, Melguizo nos alerta que a política não pode permanecer alheia aos museus, já que se encontra instalada na essência da cultura. A política e a cultura são duas caras da mesma moeda, assim como a estética e a ética. A arte e a cultura não estão esvaziadas de intenções, apresentam um relato, fixam imaginários. A cultura é um dos espaços mais políticos de uma comunidade, pois está em função da transformação das pessoas, das sociedades, das realidades. E nos alerta também que é a política que torna possíveis as utopias, e as utopias são aquilo que vamos transformando em caminho na medida em que nos aproximamos de um horizonte com mais oportunidades. Os museus têm que transformar esse horizonte sempre em um novo caminho.

Aqui chegamos à pergunta tema da conferência: “o que deveria acontecer na saída de um museu?” Melguizo aponta que devemos buscar a pergunta complementar ao que os museus têm buscado responder. Ao contrário de questionar o que se deve passar quando alguém entra no museu, chega a hora de descobrir o que deve acontecer com alguém quando sai do museu. E que essa pergunta seja respondida pelos profissionais de museus com a participação de toda a comunidade. Essa pergunta deveria dar clareza a uma palavra que não é muito usual – mas que deveria ser essencial em nossa tarefa diária – a incidência. Ou seja, quais as muitas sensações que os museus deveriam ativar nos visitantes? Sensações essas ligadas a certo êxtase cultural, que levem o visitante a construção de outras memórias e pensamentos sobre si mesmos e a sociedade.

Melguizo afirma que a cultura não é o que mostramos, não é o que produzimos, não é o que instalamos. E sim o que geramos e o que conseguimos transformar. O patrimônio não é o que temos, mas o que é necessário construir e declara: “Temor, reverência, incerteza, intimidação, essas sensações antes de cruzar a porta de um museu deveriam ser alteradas em direção ao mundo que não está incluído no Museu”.

Ao termino da conferência, fica claro que Melguizo propõe que os museus repensem sua inserção social e incorporem as noções da cultura como direito e o direito à cultura. Que reflitam sobre o que é cultura e o modo de oferecê-la e desfrutá-la.  Pensar os museus em seus processos históricos relacionados aos diversos interesses econômicos, culturais e sociais ao longo do tempo nos auxiliaria a fazer escolhas mais claras do que de fato está sendo ativado pela iniciativa museal tomada. Para onde estamos indo? Para proposições inovadoras que promovam a participação social no desenvolvimento ou, ainda hoje, estamos reforçando valores que têm como consequência a desigualdade?

Retomando Pamuk, em seu inspirador romance que virou museu, O Museu da Inocência [4]: “O poder das coisas é inerente às memórias que acumulam em si mesmas, e também nas vicissitudes de nossa imaginação e nossa memória – disso não há nenhuma dúvida”. A conferência de Jorge Melguizo, assim como a agenda do dia pautada no tema “Coleta Contemporânea para reinterpretar coleções (pré-existentes)” nos faz perceber que há, entre os gestores de muitos museus no mundo, o desejo, a busca pela reconfiguração de sua atuação: do seu conceito, da sua experimentação e da forma de interagir com os seus usuários.

Ana Cunha

ICOM 2013 / ICOM dialogos Sul- Sul de museus


[1] Para mais informações acessar: http://www.forumpermanente.org/event_pres/encontros/iv-encontro-paulista-de-museushttp://www.encontropaulistademuseus.org.br/

[2] Para mais informações acessar: https://www.facebook.com/pages/Biblioteca-Parque-de-Manguinhos/552997958083830

[3] Ensaio de Orhan Pamuk, prêmio Nobel de 2006, lançado no catálogo The Innocence of Objects e publicado em artigo no El País em 27/04/2012, com o título: Modesto manifiesto por los museos. Fonte: http://cultura.elpais.com/cultura/2012/04/27/actualidad/1335549833_020,916.html

[4] PAMUK, Orhan. O Museu da Inocência. São Paulo : Companhia das Letras, 2011. Para mais informações sobre o museu acessar: http://www.masumiyetmuzesi.org